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TCC Anônimas | A estranha mania de ter fé na vida

  • Foto do escritor: Lu Sudré
    Lu Sudré
  • 8 de mar. de 2018
  • 11 min de leitura

Atualizado: 27 de abr. de 2018

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Este perfil faz parte do projeto "Anônimas: Relatos do gênero feminino no refúgio", trabalho de conclusão de curso apresentado na PUC-SP pela jornalista Lu Sudré (Foto: Lu Sudré)

Por Lu Sudré

Do livro "Anônimas: Relatos do gênero feminino no refúgio"

Dez/2015


O pouco do português que ela sabe se mistura com o inglês, e em alguns minutos, se estabelece um ritmo descontraído de conversa, daquelas que não vemos a hora passar. Angel é uma dessas mulheres que transmitem força. No olhar, na voz, nos seus trejeitos. Resultado do que viveu ao longo de seus 46 anos de vida. Sua hospedagem temporária é a Casa do Imigrante, na Baixada do Glicério. Aliás, ela não passa despercebida, todo mundo por ali a conhece. Mesmo que não saibam seu nome e muito menos sua história, até mesmo o porteiro conhece “aquela senhora congolesa, que usa umas roupas diferentes”.


Conversando com outros imigrantes, as roupas típicas do Congo, coloridas e com enfeites, que também combinam com a presilha do seu cabelo, se destacam. Tudo isso se torna um conjunto de detalhes que se perde entre os gestos de suas mãos. Elas acompanham o ritmo de sua voz: ora acelerada, ora branda.


Assim como algumas outras pessoas da Casa do Imigrante, Angel* é solicitante de refúgio. Nasceu e viveu toda a sua vida em Kinshasa, maior cidade e capital da República Democrática do Congo, na África. Sem esperar, se viu obrigada a sair de seu país e chegou ao Brasil no final do mês de fevereiro do ano de 2015. A primeira coisa que fez foi ir até a Cáritas, que a encaminhou para a Casa do Imigrante, por onde passeia com sua cartilha de exercícios da aula de português e as conhecidas cruzadinhas Coquetel.


Logo no início da conversa, realizada quando estava aqui há um mês e meio, ela já tem certeza que existem muitas diferenças entre seu país e entre o novo país que ela espera adotar como seu. Ao comparar os países, Angel se esforça para ser compreendida claramente. A fluência no Francês e no Inglês ainda não se repetem com o Português, mas, se depender dela, logo logo isso mudará.


— "Lá eles não respeitam as pessoas. Há uma coisa que se chama lei e aqui elas são respeitadas. Esse é o grande problema do Congo. Um país que não respeita aquilo que ele chama de lei não tem como progredir."


Seu povo tem que beber o próprio suor. Os patrões não dão trégua e muitas vezes não pagam o que é de direito dos trabalhadores. O governo, por sua vez, dificulta qualquer possibilidade que os congoleses tenham para crescer. Mesclando um tom de denúncia e de desabafo, o processo para se ter uma loja no Congo e ser autônomo, por exemplo, é muito burocrático e caro. Angel enfrentou esse processo com um dinheiro que juntou com dificuldade, mas, depois de ter suas mercadorias apreendidas mais de uma vez, conseguiu legalizar seu comércio com todos os documentos necessários.


A congolesa de sobrancelhas finas, sorridente e que fala alto, vivia no Congo enquanto vendedora de roupas e confeiteira. Fecha os olhos para falar da sua cozinha e mostra fotos de seus bolos confeitados. Se diz uma cozinheira de mão cheia. Já apareceu até mesmo em um canal de televisão do Congo para ensinar algumas receitas. Ela não esconde que cozinhar é sua grande paixão e o comércio de roupas era mais uma ajuda financeira, mas que também era um trabalho que a agradava.


A mulher de negócios, comerciante com orgulho, também é mãe. São duas meninas, de 14 e 12 anos, e um enteado, de 4, que cuida como se fosse seu. Lembra-se de quando  seus filhos diziam: “Mãe, você tem que dizer nossos nomes na TV. Dissemos para nossos amigos que você apareceria”, e como ela disfarçava e dizia que da próxima vez falaria, mesmo sabendo que não podia fazê-lo. Sorrindo, encosta as mãos uma na outra e explica que o nome de sua filha mais nova, em Lingala, língua nativa do Congo, significa Graça de Deus. É inegável que a religião é parte importantíssima na vida de Angel. Seu marido é pastor de igreja evangélica. Juntos desde o ensino médio, considera seu casamento uma benção de Deus.


Na sala de estudos da Casa do Imigrante,  que fica a maior parte do tempo fechada, Angel olha com curiosidade as sacolas e sacolas de doação que estão lá, espalhadas pelo chão. As roupas de criança que observa caberia em suas filhas. Depois de compartilhar esse pensamento – que veio acompanhado com alguns segundos de silêncio – começa a falar sobre a quantidade de livros e revistas que estão lá, deixando a impressão de que não quer falar muito sobre a distância entre ela e suas meninas.

O carinho pelos seus filhos é dividido com mais 20 meninas e meninos, que fazem parte da ONG Deus com nós, seu “negócio” do coração. Tudo que sabe na cozinha era ensinado e compartilhado com esses jovens, que saiam de lá sabendo cozinhar, fazer bolos e decoração de festas. Se eles não tinham dinheiro e nem perspetiva de profissão, ela os ensinava com todo prazer. Enchia-se de orgulho a cada novo confeiteiro. Seu marido diz que ela tem algo no coração que a faz querer ajudar as pessoas.


— "Uma das minhas missões é ajudar a encontrar o que Deus planejou pra aquela pessoa, o que é pra ela fazer. Até uma pessoa cega pode cantar. Você pode não ter olhos, mas tem boca."


Antigamente conhecido como República do Zaire, o Congo foi colonizado pela Bélgica e passou por inúmeros episódios históricos relacionados a sua independência, se perpetuando como um país de muitas guerras e conflitos étnicos. A disputa que leva milhares de congoleses à morte é fomentada pela riqueza extraordinária que se esconde no subsolo do país, rico em ouro, estanho, coltan e tungstênio.


O Congo possui pelo menos 64% das reservas mundiais de coltan, nome de rochas formadas por dois minerais, columbita e tantalita. Da tantalita se extrai o tântalo, material usado na produção de celulares, computadores e tablets. Em 2001, o Conselho de Segurança da ONU confirmou a existência do “vínculo entre a exploração ilegal dos  recursos naturais e a continuação do conflito na República Democrática do Congo”.


A primeira guerra no país, de 1996 a 1997, durou seis meses e o objetivo era derrubar o ditador nacionalista Mobutu Sese Seko. A oposição, liderada pelo guerrilheiro Laurent-Désiré Kabila, era apoiada por países vizinhos como Ruanda e Uganda. Kabila tomou Kinshasa e se declarou presidente, alterando o nome do país para República Democrática do Congo. Além das atitudes ditatoriais de Mobutu, a criminalização dos movimentos sociais e o apoio ao genocídio dos tutsis, grupo étnico concentrado em Uganda, Ruanda e Burundi, principalmente, fez com que a oposição à Mobutu crescesse.


As promessas de democratização não cumpridas por Laurent Kaliba eclodiram uma forte oposição. Somados a outros conflitos armados pelo continente, a Segunda Guerra do Congo iniciou-se em 1998 e terminou oficialmente em 2003 quando o chamado governo de transição chegou ao poder. Em 2001, Laurent Kaliba foi assassinado e seu filho Joseph Kabila tomou seu lugar. Após eleições gerais em 2006, Joseph Kabila tomou posse como presidente depois de vencer as primeiras eleições que acontecia nos últimos 40 anos, onde permanece até hoje.


"Nosso presidente tem que terminar o mandato em 2016, mas ele quer prolongar o mandato. O Kabila não quer sair, quer governar além de 2016. Quer estender, mudar a lei para continuar no poder. A polícia do Governo bate e prende todo mundo que disser não pra isso."


Tal pai, tal filho. Parece que os traços antidemocráticos do governo de Laurent Kabila são os mesmos de Joseph. Angel enche a boca pra falar que o presidente  faz de tudo pra mentir e continuar no governo. A “desculpa” da vez, como ela diz, é um projeto que Kaliba criou para contabilizar toda a população do país. Mas, para isso, ele teria que ser presidente até 2018. Apesar de a oposição dizer que a gestão que o suceder poderá fazer esse trabalho, Kabila mantém o que Angel define como uma pose de líder invencível.


Na carteira do lado a que está sentada enquanto conta sua história, estão sua bolsa e celular. Aos poucos, seu corpo demonstra que está mais confortável com a situação. Seus pés tiram os tamancos pretos, já surrados, e ficam descalços sob o tapete marrom e verde da sala, que até combinam com o esmalte perolado de seus pés, que também já estão quase saindo por completo.


A sala, escurecida por uma cortina bege, abafada, a cada instante vai se tornando um local confortável, como se fosse uma sala de estar que mantém sua porta aberta, mas

Angel se incomoda com a curiosidade dos outros moradores que passam no corredor do páteo da Casa do Imigrante e a observam. Ela levanta e fecha porta. Senta, mas logo se levanta novamente para ligar o ventilador. Ela ri, dizendo que ainda não se acostumou com a temperatura quente e seca de São Paulo. Depois de posicionar sua cadeira na direção do vento, volta a revelar sua história com naturalidade.


— "A oposição começou a distribuir panfletos na rua, contra o presidente. No panfleto estava escrito: “não permitam, não permitam”. Todos estavam alarmados, avisados. As pessoas começaram a fazer protestos, ir para rua e dizer: “nós não queremos, você tem que ir no próximo ano”.


Os protestos que aconteceram nos dias 18, 19 e 20 de janeiro desencadearam o motivo que a obrigou a vir sozinha para o Brasil. Durante as marchas, a polícia do governo foi autorizada a bater, a atirar e prender aqueles que protestaram. A loja de confeitaria de Angel era no centro de Kinshasa. De lá, infelizmente, ela via tudo: todas as garotas e garotos que eram reprimidos pela polícia de Kabila. “Distúrbios na República Democrática do Congo deixam três mortos”, era o que afirmava a manchete no portal G1 sobre os protestos de três dias. No relato de Angel, que estava lá e viu as pessoas caídas nas ruas, constam muito mais do que três mortos e inúmeros desaparecidos.


O destemor, intrínseco a ela,  faz com que sua narrativa se torne mais verídica que qualquer notícia. A reportagem ressalta que apesar de ter sido reeleito em 2011 para um mandato de cinco anos, o resultado das eleições foram contestados e denunciados pela comunidade internacional. Tudo que Angel sabe de cor de salteado, inclusive que a constituição do país permite a reeleição apenas uma vez. Apesar de não concordar com as ações do presidente, não era ativista mas alguns jovens da sua ONG participavam dos protestos.


— "Dois dos meus garotos foram presos em uma das marchas e depois sumiram. Eu não pude ficar calada, fui atrás. Eu tenho documento que mostra que eles não são vagabundos. Eles eram jovens pedindo pelo país deles, eles têm direito de fazer isso."


Foram três dias de pessoas morrendo, chorando e sofrendo. Os pais dos dois jovens, de 16 e 18 anos, não sabiam o que fazer. Como diretora da ONG, se sentiu na obrigação de procurá-los. Kinshasa é uma cidade com muitos postos policiais: não teve um em que Angel não passou procurando por eles, sem saber se estavam presos ou mortos.


A partir do que Angel descreve, seu país pode ser considerado uma ditadura disfarçada de democracia. A oposição não pode se reunir e qualquer um que questione o governo é considerado oposição. É o que desconfia que tenha acontecido com seus dois garotos: foram presos e acusados de se comunicarem com forças opositoras.


— "Quando fui aos postos policiais implorar pelos meninos, disse que se eles não dessem notícias, se não os libertassem, eu iria na televisão denunciar. Depois disso, eles me investigaram e listaram a ONG Deus Por Nós como da oposição. Foi quando percebi que teria que deixar o Congo."


Angel não cansa de argumentar que eles não estavam praticando nenhum crime, apenas reivindicando seus direitos. Um pouco alterada, pega um papel e uma caneta, e começa a escrever as palavras em inglês como um método para que seu sotaque congolês não atrapalhe a compreensão. Apoiadores do governo começaram a cercar seu comércio e a seguir até sua casa. Chegaram a ameaçá-la, dizendo para ela esquecer seus alunos ou então sofreria consequências. A senhora congolesa conhece seu país, onde bater e matar não é problema para o governo. A lei é uma só: “Se você tem algo contra o governo, tome cuidado. O problema nunca são eles e sim você.” Muitos de seus conhecidos sumiam e quando ouvia era dito que eles tinham sido baleados. Todos sabem que é a polícia do governo, mas ninguém fala sobre isso.


"Eu tive que salvar minha vida. Eles me marcaram. Eu era chefe de muitas coisas, da ONG, das lojas. Por isso deixei minhas crianças. Outras pessoas teriam morrido por minha causa. Eles me seguiam. O problema não era meu marido ou meus filhos, o problema era eu."


O mais difícil foi deixar seus filhos e ter que separá-los. O enteado está com a mãe, as filhas com a avó, mãe de seu marido, que agora mora sozinho. A separação foi uma precaução necessária. Veio pra cá de avião, com as economias do comércio. Para ela, dói pensar que tudo isso ficou no passado. Sabe que ninguém tomaria conta tão bem de seus negócios como ela mesma. Dói pensar que sua ONG já não existe, mesmo não tendo ligação nenhuma com a oposição.


Assume que tenta não pensar muito no que deixou. Entrega-se totalmente ao estudo do português e ao curso de padaria que está fazendo aqui no Brasil, também indicado pela Cáritas. Sabendo de seu talento como confeiteira, a ofereceram uma vaga nesse curso. Com o português e com o diploma, tem planos. Montar um comércio aqui e trazer sua família.

Minhas crianças são minha esperança pro amanhã. Eu os amo tanto e não deixo de amar porque estou aqui. Tenho que me fortalecer pra salvar minha família. Nós não sabemos que vai acontecer com o Congo.


Mesmo com muita saudade, não fala pelo celular com ninguém além de seu marido. Angel sabe que ele não conta tudo que está acontecendo por lá para não preocupá-la. Fala sobre sua situação no Brasil, que ainda não conseguiu trabalho e que daqui 2 meses terá que sair da Casa do Imigrante e não tem perspectiva para onde ir. Seu marido a aconselha a estudar e não se acomodar, mas, em contrapartida, dispensa a conversa com seus amigos para não ser julgada e receber comentários que a desanimariam.


— "Meu marido me apoia mas os outros me julgam porque abandonei minha loja e minha família para salvar minha vida. Quando o Conare oficializar minha condição de refugiada, eu vou trazê-los para perto de mim."


Apesar das dificuldades, a personalidade e a fé de Angel não a deixa desanimar. Seus olhos lacrimejam, mas ela não chora. A esperança sobressai. Quando brinca com a situação, parece que  tem o futuro em suas mãos e fará acontecer tudo que sonha. Prefere não trabalhar agora para aprender o português e se integrar ao país. Na última aula, aprendeu a conjugar os verbos no passado e acertou todos os exercícios. Ficou animada a ponto de parecer uma criança que acabou de ganhar uma estrelinha.

Próximo ao horário do jantar, a fome também se aproxima e Angel comenta sobre o Fufu, um dos seus pratos favoritos, típico do Congo. Parece com o cuscuz daqui, mas é pra comer com carne. Aos risos, não tem dúvida: se alguém cozinhar Fufu aqui no Brasil, os congoleses vão chorar de emoção!. Aliás, logo que chegou a comunidade congolesa soube de suas habilidades culinárias e ela pôde saciar um pouco a saudade do que mais lhe faz falta: cozinhar.


“Fiz carne, quatro pratos de comida ao mesmo tempo. Essa é minha vida, é o que eu gosto de fazer. Se aqui fosse minha casa, eu já tinha te dado algo para comer”.


Solicitante de refúgio. Sem moradia fixa. Sem trabalho e sem dominar a língua. Ainda assim, sua simpatia está presente e conquista muita gente. Dedicada que só ela, sua única saída é estudar o português enquanto o governo brasileiro não a declara oficialmente refugiada. Mesmo com as dificuldades, se apaixonou pela cidade. A enxerga como uma montanha de possibilidades, onde tudo pode acontecer. Quando questionada sobre a fonte de sua força, ela diz que foi, é, e sempre será sua fé.

— "Deus é meu criador, ele pode fazer o que quiser comigo. Eu tenho que me fazer feliz, pra vida voltar ao normal. Deus proverá. Não quero dar espaço pra dúvida na minha cabeça, no meu coração. Você vai ver. Não vai demorar muito e eu te chamo para comer um pedaço de bolo na minha padaria."


* O nome da refugiada foi alterado para proteger sua identidade


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